quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O Pai e o "Bloco"

O meu pai com o grupo du "Bloco" em frente à casa da Lapa


Descobri, há tempos, um envelope com fotografias do meu Pai tiradas em 1940/1 e duas folhas de papel já muito amareladas pelo tempo. Uma preciosidade ! o número 1 do jornal o "Bloco" datado de 9 de Outubro (sem indicação do ano em que foi escrito mas penso ter sido no principio dos anos quarenta). Transcrevo aqui algumas passagens :


"9 de Outubro BLOCO  1
Director: Pedro César F. Piloto
Redactor: Joaquim H. Oneto
Eis a Razão
Incumbiram-em de fazer estas linhas, que pessoas de índole benévola chamarão "artigo de fundo". Não vou começar com o estilo habitual, lastimando a pobreza, desejando boa sorte, ou apregoando moralidade. Não tenho dicionário à mão para buscar termos domingueiros; todavia vou dizer alguma coisa sobre a razão de ser desta despretenciosa fôlha, mas dentro do âmbito das minhas fracas possibilidades literárias.
Iniciativa nossa, sem intervenção de individuos estranhos ao nosso "Bloco", a ideia foi acolhida com verdadeiro regozijo.
A boa vontade de todos robusteceu o espírito daquele que pela primeira vez se lembrou de tornar mais intimos ainda, os intimos laços de solidariedade que nos uniam já.
Em redor da amizade que nos cerca, tentamos gravar os nossos projectos, realizações e polémicas, para que, reforçados por esse factor, nos sintamos mais independentes, mais unidos e mais cônscios da afeição que nos liga, formando un bloco indissoluvel. Este jornal é nosso e reduz-se ao nosso âmbito, mas se por ventura chegar até olhos estranhos, lembrai-vos que tudo isto é intimo e familiar e negocios de familia só em familia devem ser estudados.
Gilberto Campos
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N. da R.
O Dr. Gilberto Campos é um colonialista com larga fôlha de serviços e sobejamente conhecido pelas terras por onde tem passado, em especial Estarreja e Mangualde, onde devido às suas aptidões oratórias e ao seu gesto arrebatado conseguiu levar à certa os respectivos indigenas das redondezas, e mergulhar a seta de Cupido nos corações mais arrogantes, ante a inveja das casadas, esperança das viúvas e ambição das solteiras.
Isto é que é ser português... O resto é abobora !
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vida mundana ou o BLOCO VISTO POR DENTRO
Altas Patentes Militares
Segundo consta nos meios bem informados do Ministério da Guerra, vai ser promovido a alferes o nosso amigo J. Santana que conta uma brilhante fôlha de caricaturas. Daqui lhe enviamos uma respeitosa continência.
Vida social
Por passear por jardins públicos até altas horas da noite, apanhou uma terrivel constipação o nosso avantajado amigo Manuel Matos que, felizmente, ja se encontra melhor e disposto para ... outra.
Vida maritima
Tem causado sensação nos meios navais os exames prestados à Escola Náutica por dois dos nossos amigos. Nas provas de Matemática quasi que sabiam os logarìtmos de cor. Em Fìsica.... aquilo foi duas penadas, e no resto até se ofenderam com a simplicidade do caso. Estes nossos futuros oficiais vão ser cumprimentados pelos adidos estranjeiros, e naturalmente promovidos a comandantes honorários, ou a justiça é uma batata. Valentes e conquistadores, não tarda que os vejamos em paragens longìquas a atraìrem as atenções do belo sexo que até os capitães se hão-de morder de inveja.
Oxala não enjoem...
Passado, presente e futuro
Ontem éramos um grupo de rapazes dominados pelas mais extravagantes ideias tão proprias da idade. Vivìamos o tempo do berlinde, da bola de trapos e do Texas Jack. O limite maximo das nossas ambições era possuirmos o boneco mais difìcil daquelas tão longas colecções de jogadores, artistas, clubes, etc.
Esse tempo passou. Hoje impulssionados pela idade, prestes a ultrapassar a fronteira da adolescência, sentimo-nos no denso casulo da vida com um respectivo e limitado pêso de responsabilidades na nossa consciência.É hoje que recordamos os belos tempos que jà não mais voltam.
A nossa ambição já não é o berlinde nem o abafador : é que num futuro relativamente proximo, possamos ocupar um lugar de maior ou menor responsabilidade que consolide a nossa posição perante a sociedade.
Todos os do BLOCO jé têm a sua vida mais ou menos esboçada. Um abraçou a vida artistica (o J. Santana), outro foi seduzido pelos densos mistérios da selva africana, ou por um emprego numa repartição do Ministério das Colónias, outro (penso ser este o meu Pai que foi para o "Técnico" depois de ter feito o 7° ano no Liceu Pedro Nunes), alem do amor, abraçou a Engenharia. Outro é já um conceituado comerciante da nossa praça, e os restantes (um dos quais é o Pedro Piloto, piloto na Marinha Mercante), seguindo as lusas tradições de navegadores, antes preferem andar no mar alto.. que nas bôcas deste mundo.
E assim, mais tarde o destino separará, não a amizade, mas sim a homogeneidade que hoje nos envolve.
Agrupemo-nos pois para os mais diversos fins, e para que esta época tão periclitante da nossa vida possa ser um dia saudosamente recordada.
Recordações do passado, análises do presente e projectos do futuro, é um dos fins destas linhas. O outro é que, reunindo o util ao agradavel (quem não tem uma hora para escrever), arquivemos, melhor ou pior as nossas discussões, projectos e opiniões, para que um dia mais tarde, ao folhearmos estas fôlhas nos reste a SAUDADE.
Pedro Piloto


(no fim da pagina 2) :
"BLOCO" regista em caixa um pick-up e dois discos além duma "genica" formidável para dançar, donde pedimos que nos dêem sugestões para organização de bailes, ou alguém que para eles nos convide.
Consta-nos que há também um grupo de rapazes que formou un club, e um "time" de foot-ball. Porque não irá a rapaziada do BLOCO defrontar-se com eles num desafio amigavel ?  Não seria mais um estìmolo de camaradagem entre nòs e uma maneira de nos darmos a conhecer ?


Para quem não nos conheça (apresentação):
Gilberto Campos
Já foi descrito na primeira página, mas cuidado com ele. Vê-lo e amá-lo é obra dum momento.
Bétinho
De indole pacífica, excepto quando lhe chega a mostarda ao nariz, esse nosso futuro engenheiro, de coração cansado nas lides amorosas, conseguiu enfim a sua reforma. Safa ! já não era sem tempo! Perante a mocidade depravada, as suas teorias choveram mas não molharam. Abusa excessivamente do vinho do Pôrto e do "Pá" Oh pá ! Oh pá ! Oh pá... ( Bétinho é o meu Pai)
Santana
Militarão cem por cento, conta na sua fôlha de serviços várias batalhas ganhas como o bilhar, o sete e meio e o liques. (lembro-me muito bem do Santana. Era arquitecto e tinha uma mulher muito bonita. Morreram os dois, muito novos, num terrível acidente de automovel. Tinham dois filhos).
Manuel Bastos
O seu olhar de criança precoce tem um mixto de oriental aliado a um fìsico de fáquir. Não admira, nasceu no seio da India misteriosa (só lhe falta a flauta e a serpente!). Pena foi que não trouxesse para cá uma odalisca... mas odaliscas só as da tabaqueira e mesmo isso já não há.
Jorge Matos
De parceria com o nosso Santana forma um dueto rival das Andrews Sisters a arrotarem qualquer coisa parecida com um swing...
Manuel Matos
Desde que se apanhou de chapéu novo, fez-se romântico e é vê-lo pelos jardins colhendo flores até um dia ser caçado pelo guarda. Tem cuidado ó Manel que o lagarto dá ao rabo...
Fernando Pereira
Ilustre "Mestre" vai encaminhando os seus discìpulos no caminho da ciência e da respeitabilidade. Se eles soubessem !!! É vulgar na rua cumprimentarem-no respeitosamente de chapéu na mão -"Bom dia Senhor Mestre"- Tem desgosto de não ser mobilisado. Tem orgulho, o peito saliente que até parece um garrafão de cinco litros!...
Manel Alexandre
Sabe tudo e tudo vê. Até parece um almanaque. Fruto duma queda em pequeno, segundo ele diz, ficou uma saliência narigal que até parece uma torneira de pressão. Mas bom rapaz, bom material.
Pedro Piloto
Descrito na penúltima(*) página. Dêem-lhe corda, coisa que ele muito aprecia (lembro-me muito bem do Pedro Piloto. Era bonito e tinha imensa piada. Não sei se ainda é vivo).
N.da R.
(*) O Senhor Comandante Pedro Piloto, ilustre oficial da Marinha Mercante, é um individuo muito conceituado não só nos meios apogìsticamente espiritualistas, mas mais ainda nas sinuosas vias do humorismo. Das frìgidas linhas árticas às temperaturas da linha de Sintra, ele tem espalhado Ciência e Amor. Mas a terra que maiores remanescências deixou na sua alma ardente foi Copacabana para desdita dos... tìmpanos de seus amigos.
Boa viagem e até à proxima."
O Pai (de chapeu) o Santana (no meio) em 1940

4 comentários:

  1. Gostei de ver....Com que então o teu pai era o Betinho...ehehe, e também achei piada ver o tal arquitecto Santana, cuja história trágica conhecemos por acaso, contada pelo filho dele numa casa no Alentejo, a propósito de casas na Lapa....

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  2. Ainda me lembro da Avo o chamar Bétinho..
    Ainda hoje tenho dificuldade em imaginar o Pai no tempo em que ele escreveu o "Bloco". Como seria ele ? a imagem que tenho dele é, ainda, a do militar rigido e austero.

    Não sabia que conhecias o 'Quinhas' Santana. que é feito dele ? ele tambem é arquitecto ? e o irmão ? gostava de ter noticias deles. Em miudos, eles vinham muito a nossa casa. Moravam na rua paralela a nossa e a prédio deles fazia esquina com a rua Garcia da Horta.

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  3. Já te tinha falado no Carlos Santana a propósito dos pais dele estarem sepultados no jazigo da tua família..... Acho que o teu irmão Luis acabou por tratar do assunto, mas acabei por nao lhe perguntar se estava tudo resolvido pois não temos grande assiduidade nos contactos.

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  4. Isso é que é uma história. Aliás eu já a contei, savo erro nos primeiros posts do Expresso, lá para maio de 2007.

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