quinta-feira, 14 de abril de 2011

"Acenos de carinho"

Nos arrabaldes do Porto ainda se come muito caldo de couves colhidas nas reminiscências das quintas reconhecidas aos penedos de granito de certas curvas e esquinas. Lá para os lados de Gondomar, uma porta de ferro forjado separa a rua das escadas da Associação da Dona Eugénia & Co. O “Co” não é agraciado por recursos humanos, é unicamente a colega, imprescindível nesta empresa titânica, que produz carinho e amor. Responde esta Associação ao nome de “ACENOS DE CARINHO”, não subsidiada pelo erário público, acolhe crianças dos 6 meses aos 4 anos, das 7 da manhã ás 7 da tarde. 
Quantos são os hóspedes? Difícil de dizer, entre a dúzia e a arroba, talvez mais… mas há sempre um lugar para os retardatários.
O cinismo administrativo e a condescendência social encontraram um epíteto para estes, que é de carenciados. Aqui não há carências, o banco alimentar não os esquece, alguns comerciantes também não.
A Associação pede uma participação aos custos, de cem euros mensais, por cada criança acolhida, mas… a Dona Eugénia ainda está á espera de muitas mensalidades que se esqueceram da morada da Associação. Diz com ar resignado, a partir do momento que posso pagar a minha colega… o resto se verá!
Uma pinceladela nas paredes cansadas é imprescindível, mas será um quarto de cada vez. Este mês um senhor vem ajudar, mas os 80 euros para a tinta tem de sair… uma fortuna.
Esta casa “de campo”que outrora deve ter pertencido a um tripeiro bom funcionário, dá um certo“respeito” pela idade. Um corredor talha a casa em duas metades com três enormes portas de cada lado. O soalho que já engoliu quilos de sabão amarelo e esfolou muitos joelhos salva-nos do arrepio dos muros em granito e da caliça que já esta cansadíssima. As paredes estão nuas. Uma casa de banho glacial torna-se acolhedora pela presença de duas retretes minúsculas em relação às imponentes louças dos anos 20.
  
É a hora da sesta, algumas vozes, em surdina, dos mais velhos, corta o silêncio monástico. Os mais pequenos sentem a presenças do intruso, as cabeças levantam-se como os girassóis entre dois raios de sol. Quem será?
É a hora de mudar a fralda, o que além da operação que preferimos deixar aos outros, implica limpar a lágrima no canto do olho, um grande xi-coração e toque final, um beijinho lenifique.
Num outro quarto procuro o “ovinho da panela”,que responde ao nome de Tiago, neto da D. Eugénia e que, acessoriamente, me dará uma malga de sopinha quando serei velhinho, porque partilho o mesmo estatuto que a D. Eugénia, salvo que eu não sou o avô, sou o pappy*.

O Tiago é como o seu papá, é o ultimo a cumprir a alvorada. A tropa está na parada, que é composta por três salas, atribuídas segundo as actividades e a idade dos hóspedes.
Alvoroço numa das salas, erupção de lágrimas, ela sai de dedo esticado seguida da corte de testemunhas que … aquele bateu-me… seis cabeças acenam positivamente com o dedo denunciador para o culpado todo enfiado.
A bonança nas fileiras é conseguida com a inspecção do rescaldo da “agressão”. Chegou-se à conclusão que o dói-dói é enorme e que se as tripas grossas conseguiram passar, mistério… as delgadas não conseguiram, o que obviamente, implicou mais seis peritagens para desvendar o dito cujo mistério.
O culpado, cabisbaixo, já vai direitinho para o castigo, uma alcofa usadíssima no canto da sala, porque se a Dona Eugénia intervêm, é a toque de caixa que o busílis se resolve.
O reflexo condicionado das quatro da tarde, é a correria para as mesas, lugares reservados e defendidos com unhas e dentes, porque o Yop chegou. Gesto automático, o Yop é ingurgitado sem ciúmes, porque todos são de morango e penso bem, que sempre foram de morango, ao ponto que os refilançoscomeçam a surgir eufemísticamente… dói-me a barriga. Quem não bebeu o Yop, não cheira o bolo. A sentença é imediata, quem tem dor de barriga não come bolo. Como um relâmpago, os Yop’s são eclipsados e uma inspecção minuciosa verifica se a ultima gota foi bebida. Resultado, alem das beiças lambuzadas um monóculo, digno do Spínola, no olho.
Chegam mais Yop’s, mas ninguém lhes pega, mas o bolo desaparece e milagrosamente a dor de barriga. A galhofa é geral, mas ninguém se levanta sem a autorização. Quando esta chega, as feras já sabem a arena que lhes é reservada e não vão à sala do lado, aonde os comparsas que ainda não tem a postura primata, estão condenados a esperar nas cadeiras de bebé, salvo quando os prantos na sala vizinha são maiores que a gritaria na arena. Lá vão todos, na correria, indagar… Olha… deixaste cair a chucha. Acto contínuo, os “grandes” apanham o sésamo e espetam-no na boca do infeliz, que seca as lágrimas com umas mamadelas descomunais. Olha não chores… deixa lá…
Sábado é a festa do Pai, a nora da D. Eugénia, veio de armas e bagagens, nas quais, o segundo neto de mês e meio, para fazer o atelier “prenda do dia do pai”. A originalidade desta não fez as parangonas da imprensa local, mas o método de fabrico é delicioso.
Uma folha de papel vegetal uma boa porção de guache azul, vermelho ou amarelo é proposta ao artista que se deve apresentar na cozinha, unicamente quando é convocado. Qual cor queres, pergunta a professora. Enquanto o artista tergiversa, os outros espreitam á porta para darem a sentença… essa não, o azul é melhor. Com rigor e carinho, a professora, única diplomada em puericultura, põe tudo na ordem. A serigrafia da mão no copo não é recuperável como impressão digital, mas unicamente como a do coração dos diabretes contentes por terem uma prenda para o papá.
Cinco da tarde, toca a campainha, os pais começam a chegar, os decibéis diminuem até ao silêncio total ás 19h00, hora de por no lixo as fraldas recheadas, garrafas de Yop, caixas de papas etc., arruma-se os brinquedos, passa-se a esponja.
Só foram… 12 horas contínuas, porque os Acenos de Carinho, abre às sete da manhã.
É a queda da cortina e um suspiro de alivio. Até amanhã.

É aqui que está o esplendor de Portugal…

*O "pappy" do Tiago, autor do texto e das fotos,  gostaria de deixar aquí este testemunho de solidariedade.

8 comentários:

  1. :)
    ...tantos anos vivi para esses 'lados de Gondomar'...
    Tanta sopa dessa aprendi a gostar.
    O esplendor está - como sempre esteve, como permanecerá - nos corações generosos e sãos.

    :))

    ResponderEliminar
  2. Belíssimo e pungente texto! É de facto, Portugal no seu melhor; no esforço desinteressado e na dedicação a uma causa - neste caso, a uma causa maior! Faço votos de que estes miúdos possam crescer em escolas que, como dizia o Prof. Agostinho da Silva, sejam viveiros de conservar crianças e não fábricas de produzir adultos. Felicidades!

    ResponderEliminar
  3. Sem palavras...
    obrigada Helena, eu sei que do ponto de vista do humanismo continuamos a ser um país admirável...

    o texto é de uma ternura...
    Isabel Seixas

    ResponderEliminar
  4. Excelente testemunho. Ainca há gente assim. E suspeito que vão precisa muito mais.

    ResponderEliminar
  5. Também "faço votos de que estes miúdos possam crescer em escolas que sejam viveiros de conservar crianças e não fábricas de produzir adultos".

    Há tempos li que em Portugal, mais precisamente nos arredores de Lisboa, há escolas que mantêm a cantina aberta aos fins de semana e nas férias escolares para servirem a única refeição quente diária a um número crescente de alunos.

    ResponderEliminar
  6. Que beleza Helena O.
    Podemos sempre lavar a alma com exemplos destes.
    É verdade sim que há cada vez mais escolas a manterem a cantina aberta ao fim de semana. Apesar do sacrifício e despesa que isso representa!

    ResponderEliminar
  7. "Lavar a alma"! que lindo querida Helena!

    ResponderEliminar
  8. estou indignada......
    fecharam o acenos de carinhos....e agora? o que sera das criancas que tinham ali a sua segunda casa? que tinham ali todo o carinho..muitos por vezes com os pais a passar por dificuldades em casa, e que viam ali a oportunidade de nada faltar aos seus meninos...deus nao esquece quem ajuda....

    ResponderEliminar