Antonio Lobo Antunes (foto Facebook)
“Em acabando este livro apetece-me escrever um romance policial, ou antes um romance negro. Trago esta ideia há anos e chegou a altura de o fazer.
Lembro-me de falar nisso ao meu irmão de alma José Cardoso Pires
- Sabes do que tenho vontade, tu?
esperei que o silêncio retornasse suficientemente côncavo para as minhas palavras caberem lá dentro e esvaziei o púcaro
Fazer um romance negro.
Recebi de resposta
- Ando a pensar nisso desde que comecei.
Demorámo-nos às voltas com o plano de fazer o tal romance negro a meias, em capítulos alternados, depois o Zé teve aqueles problemas que acabaram numa morte horrível e, mesmo sem ele, não abandonei a cisma. Se for capaz de o pôr em marcha dedico-lho, claro, nós que não dedicámos livros um ao outro:
- Porque é que a gente nunca dedicou um livro ao outro?
- Achas que é preciso?
e ficámos assim. Mas levas com o teu nome no romance negro que te lixas. E meto lá os teus bairros. E meto-te lá a ti, de personagem principal. Não todo, claro, certas coisas de ti. Fazes-me tanta falta, meu cabrão, há tanto para contarmos um ao outro. O fim de um amigo é um martírio, não páras de te agitar cá dentro, raios te partam. Tu e o Ernesto Melo Antunes: duas feridas abertas que não saram. Mas nunca tive uma intimidade assim com outro homem. Bom, adiante. O romance negro é uma promessa que te fiz e acabou-se. Continuo a não beber, continuo a gostar de comida de avião
- Como posso ser amigo de um sacana que gosta de comida de avião?
papava o meu tabuleiro, papava o teu, falávamos de bailes nos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, boxe, bilhar às três tabelas, chocos com tinta
(eu detesto)
não falávamos de literatura nem do que cada um estava a lavrar. Mostrava-se acabado o trabalho, num tonzinho distraído
-Queres ler isto?
e, sem mais palavras, suspendiamo--nos num pingo à espera da opinião do outro, que se resumia sempre a uma frase vaga. Percebia-se o julgamento pelo clima à volta da frase, não pela frase em si. E era tudo.
À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em torno de nós. Sobram cinzas, raízes, sombras, restos de pedras calcinadas, vozes ao rés da erva à procura da boca onde nasceram, a pedirem que as escutemos. O que se ganha em troca? Uma cor diferente no silêncio, aquilo a que chamamos sabedoria e não é mais que uma tristeza resignada. Outras pessoas habitarão aqui e a gente primeiro retratos nas cómodas, depois retratos nas gavetas, depois retratos na cave, depois nada.
Cartas numa caligrafia antiga que um vento defunto inclina. E a morte final com o esquecimento do nosso próprio nome. Ficam os livros…(…)
In “Visão”, 15 de Julho de 2010
Obrigada António!
Existem linguagens de um hermetismo amoroso que só os falantes compreendem na plenitude.
ResponderEliminarOs homens das letras com asas são assim e quedamo-nos nos beirais, sossegados, de peito oscilante, a ver o seu voo.
Beleza de ser.
Maravilha de saber.
Poder de amar.
Oh Margarida! Merci!!!
ResponderEliminar«À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em torno de nós. Sobram cinzas, raízes, sombras, restos de pedras calcinadas, vozes ao rés da erva à procura da boca onde nasceram, a pedirem que as escutemos».
ResponderEliminarConheço bem esta "tristeza resignada"...
Francisco,
ResponderEliminarSão tantos a partirem
"a pedirem que os escutemos"
resta-nos
a alegria de os ter conhecido e amado
restam-nos os livros
e uma imensa saudade...