sábado, 17 de julho de 2010

Ficam os Livros...

Antonio Lobo Antunes (foto Facebook)


“Em acabando este livro apetece-me escrever um romance policial, ou antes um romance negro. Trago esta ideia há anos e chegou a altura de o fazer.

Lembro-me de falar nisso ao meu irmão de alma José Cardoso Pires

- Sabes do que tenho vontade, tu?

esperei que o silêncio retornasse suficientemente côncavo para as minhas palavras caberem lá dentro e esvaziei o púcaro
Fazer um romance negro.

Recebi de resposta

- Ando a pensar nisso desde que comecei.

Demorámo-nos às voltas com o plano de fazer o tal romance negro a meias, em capítulos alternados, depois o Zé teve aqueles problemas que acabaram numa morte horrível e, mesmo sem ele, não abandonei a cisma. Se for capaz de o pôr em marcha dedico-lho, claro, nós que não dedicámos livros um ao outro:

- Porque é que a gente nunca dedicou um livro ao outro?

- Achas que é preciso?

e ficámos assim. Mas levas com o teu nome no romance negro que te lixas. E meto lá os teus bairros. E meto-te lá a ti, de personagem principal. Não todo, claro, certas coisas de ti. Fazes-me tanta falta, meu cabrão, há tanto para contarmos um ao outro. O fim de um amigo é um martírio, não páras de te agitar cá dentro, raios te partam. Tu e o Ernesto Melo Antunes: duas feridas abertas que não saram. Mas nunca tive uma intimidade assim com outro homem. Bom, adiante. O romance negro é uma promessa que te fiz e acabou-se. Continuo a não beber, continuo a gostar de comida de avião

- Como posso ser amigo de um sacana que gosta de comida de avião?

papava o meu tabuleiro, papava o teu, falávamos de bailes nos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, boxe, bilhar às três tabelas, chocos com tinta

(eu detesto)

não falávamos de literatura nem do que cada um estava a lavrar. Mostrava-se acabado o trabalho, num tonzinho distraído

-Queres ler isto?

e, sem mais palavras, suspendiamo--nos num pingo à espera da opinião do outro, que se resumia sempre a uma frase vaga. Percebia-se o julgamento pelo clima à volta da frase, não pela frase em si. E era tudo.

À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em torno de nós. Sobram cinzas, raízes, sombras, restos de pedras calcinadas, vozes ao rés da erva à procura da boca onde nasceram, a pedirem que as escutemos. O que se ganha em troca? Uma cor diferente no silêncio, aquilo a que chamamos sabedoria e não é mais que uma tristeza resignada. Outras pessoas habitarão aqui e a gente primeiro retratos nas cómodas, depois retratos nas gavetas, depois retratos na cave, depois nada.

Cartas numa caligrafia antiga que um vento defunto inclina. E a morte final com o esquecimento do nosso próprio nome. Ficam os livros…(…)
António Lobo Antunes
In “Visão”, 15 de Julho de 2010

Obrigada António!

4 comentários:

  1. Existem linguagens de um hermetismo amoroso que só os falantes compreendem na plenitude.
    Os homens das letras com asas são assim e quedamo-nos nos beirais, sossegados, de peito oscilante, a ver o seu voo.
    Beleza de ser.
    Maravilha de saber.
    Poder de amar.

    ResponderEliminar
  2. «À medida que o tempo avança vai-se ficando despovoado. Os eucaliptos dos anos destroem tudo em torno de nós. Sobram cinzas, raízes, sombras, restos de pedras calcinadas, vozes ao rés da erva à procura da boca onde nasceram, a pedirem que as escutemos».

    Conheço bem esta "tristeza resignada"...

    ResponderEliminar
  3. Francisco,
    São tantos a partirem
    "a pedirem que os escutemos"
    resta-nos
    a alegria de os ter conhecido e amado
    restam-nos os livros
    e uma imensa saudade...

    ResponderEliminar