terça-feira, 15 de março de 2011


Cântico Negro
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio
dito por João Villaret

7 comentários:

  1. Sempre vi neste poema de José Régio uma estrita analogia com o poema de khalil Gibran no profeta sobre as crianças, e o titulo do livro de Milan kundera, a insustentável leveza do ser...Os três falam da indomável vontade da liberdade do eu...

    Lindo, de tão agreste, rebelde de tão livre, sensível de tão humano...Atual de tão adaptável.
    Isabel seixas

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  2. Querida Helena,
    Mais uma vez, ao passar por aqui as minhas lembranças "aparecem".
    A primeira vez que ouvi este poema foi pela voz de Maria Bethânia e fiquei deslumbrada.
    Lembro-me de ouvir O João Villaret na tv, não faço ideia de há quantos anos isso foi,mas vou averiguar...só sei que era miúda e ficava pregada no sofá! Que emoção.
    Hoje, adorei sentir todas essas emoções.
    xx

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  3. Querida Isabel,
    Sei que me compreende.

    «La moitié de ce que je dis est dénué de sens, mais je le dis de façon à ce que l’autre moitié puisse vous joindre» Khalil Gibran, Sand and Foam (1926).

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  4. Sweet Papoila,
    Ainda bem que este poema "lhe foi direitinho ao coração":)!

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  5. Não sei para onde vou, Jorge, sei que não vou por aí. Temos de descobrir novos caminhos!

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  6. Claro Helena...
    Há quem consiga casar os desenhos das divagações basicamente através do querer, a empatia é multidimensional...
    Abraço
    Isabel seixas

    Et voilá comment allez vous je parle de santée... bien sur (agora sou eu que peço desculpa se cometi alguma incongruência no francês...)

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