O tenente Fernando Oneto em Mafra (1953/4)
"…Sou originário de uma família de média burguesia lisboeta, naturalmente conservadora, em que o problema político era aflorado em termos perfeitamente convencionais.
Lembro-me, por exemplo, de que quando acabou a guerra de Espanha, em minha casa (morava nessa altura num velho palacete na Lapa), foram hasteadas, lado a lado, as bandeiras espanhola e portuguesa. Confessava-me nos Jesuítas. Estava encarreirado para tudo, menos para o que iria acontecer.
O meu irmão mais velho foi para o colégio de Santo Tirso (o meu pai exigiu que lhe dessem o numero 290, o seu, muitos anos antes, nos Jesuítas de São Fiel). Repito: uma família burguesa, tradicionalista, conservadora. Digo, com frequência, que, se alguma coisa fiz na vida, não foi a família que ajudou.
O meu irmão estudava violino, porque o padrinho era violinista e a minha irmã dedicava-se ao piano porque era suposto que as raparigas o deveriam fazer. Nenhum tinha o mínimo ouvido para a musica: nunca vi negações maiores... A mim, que sou capaz de assobiar, de ouvido, a parte de piano do “Concerto n° 2” de Rachmaninoff, não me ensinaram nada.
Fisicamente era de uma debilidade total. Tivera gânglios nos pulmões e por isso os meus pais vigiavam-me com cuidados permanentes. Era o “menino”. Essa minha falta de saúde originou alguns pequenos-grandes vexames, o maior dos quais sucedeu no dia em que entrei para o Liceu Pedro Nunes. Cheguei com uma criada atrás que me levava a pasta. Fizeram-me uma surriada monstra de mistura com uns “caldos”. E como era fraquinho, o meu pai pediu para que eu fosse dispensado de ginástica. Isso marcou-me terrivelmente: os meus colegas a executarem os exercícios e eu sentado num banco a ver. Depois, tendo o meu pai adoecido gravemente, aquele centralismo paternalista perdeu força e eu, que aos dez, onze anos, fora para o liceu acompanhado da criada que me levava a pasta, no quarto ano era o ponta-direita da equipa de futebol do Pedro Nunes. No quinto, estava como profissional do Estoril Praia onde ganhei o meu primeiro ordenado, seiscentos escudos mensais, a jogar futebol. Chegava a casa às seis da manhã. Quer dizer: começava a ser um “galdério” de todo o tamanho.
O meu pai morreu quando eu tinha 17 para 18 anos, o que também influiu no nosso estilo de vida. Não éramos ricos, mas ele pudera proporcionar-nos um desafogo material bastante bom. A sua morte trouxe dificuldades financeiras à família. Por outro lado, a disciplina da casa baseava-se no autoritarismo que ele impunha. Desaparecido o chefe, o clã desagregou-se. Entrei abertamente no sistema que já vinha praticando: “Jardim-Cinema”, “bonecos”, miúdas. Em suma, a carreira clássica de um desocupado com menos de 20 anos.
Deixei de jogar futebol. O treinador Biri convocava-nos para as 8 da manhã e eu faltava porque a essa hora estava a deitar-me... até que fui posto perante um problema em que nunca tinha pensado, a tropa. O meu irmão, que já era militar, chamou-me a atenção para a circunstância de ser preferivel frequentar o curso de oficiais milicianos, entre outras razões por que ganhava mais. ”Ganhar mais” dizia-me qualquer coisa. Pedi dinheiro à minha mãe e fui estudar. Num ano, fiz a “cadeira” que me faltava do sexto, fiz o sétimo ano e a admissão à Faculdade (que frequentei vagamente, só por causa da matricula) e fui apanhado pela tropa.
Começa aqui, de facto, o meu esquema de vida nocturna em Lisboa com “boîtes”, cabarés, jogo, festas, mulheres, o roteiro normal de uma certa classe de meninos daquele tempo. Antes da tropa, durante a tropa e depois da tropa.
Estava em Infantaria 1 quando se deu o caso da Índia, com a invasão de Dadra e Nagar Aveli. O comandante ofereceu o Regimento e eu considerava-me o ultimo dos homens se não fosse um dos voluntários a marchar."...
Extrato da primeira de uma série de entrevistas, recolhidas por Martinho Simões, sob o título "Um revolucionário confessa-se" -Memórias de Fernando Oneto- publicadas no "Diário de Notícias a 10 de Fevereiro de 1975.
Minha querida Helena O
ResponderEliminarQue bom rever o Fernando Oneto nestas suas palavras!
Helena,
ResponderEliminarEstava a ler o texto e a pensar num dos meus tios!
Vamos poder ler mais??
xx
Interessante. Se pudres pôr menos texto, facilita a leitura. Mera sugestão.
ResponderEliminarQuerida Helena,
ResponderEliminarTenho muitas, muitas saudades dele!
Sweet Papoila,
ResponderEliminar:)! há mais, sim. O meu tio era um homem interessantíssimo!
Ok Jorge. Obrigada.
ResponderEliminarHelenamiga
ResponderEliminarFui um grande amigo do seu pai Fernando. Um Homem com caixa alta que conheci quando era eu um puto e voltei a encontrar depois do 25 de Abril. No Diário de Notícias onde eu era então chefe-adjunto da Redacção e ele depois chegaria como membro da Administração, reatámos os laços que não se tinham perdido, tinham-se apenas... obnubilado.
Ao ver este passo da entrevista (perdão, da série de entrevistas) que deu ao Martinho Simões, antes de eu ter ido para o DN com o Victor da Cunha Rego e o Mário Mesquita, recordei-me da sua figura: Homem Bom, bonacheirão, culto, amigo do seu amigo, vertical e honesto. Ou como ele dizia, quando pelas madrugadas bebíamos uns copos, Óneto.
Um abraço sincero e de muita consideração
Venho atrasado, mas venho.
Caro Henrique,
ResponderEliminarObrigada pelo seu testemunho. Como escreveu o nosso amigo, Francisco Seixas da Costa, o Fernando Oneto era meu tio, irmão do meu pai.