António Lobo Antunes lembra Ernesto Melo Antunes. O melhor presente neste dia de reis:
"Os amigos não morrem: andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda: desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido. É como, não: nunca partiram. E assim o Ernesto e eu voltamos a estar juntos em Santa Margarida, em África, em Lisboa, em Sintra, torna a emprestar-me a chave do apartamento em Paris, na rua Saint Dominique, no qual me enfiava umas temporadas a escrever e a fazer maldades, invejoso da estante cheia de livros da Pleiade e passeando sob os castanheiros dos Inválidos durante o verão indiano. De modo que eis-nos juntos outra vez, entre silêncios, aberturas indianas do rei e longas conversas em que ele falava muito mais do que eu, àcerca de literatura, filosofia, política. Ou seja eu falava pouco
"Os amigos não morrem: andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda: desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido. É como, não: nunca partiram. E assim o Ernesto e eu voltamos a estar juntos em Santa Margarida, em África, em Lisboa, em Sintra, torna a emprestar-me a chave do apartamento em Paris, na rua Saint Dominique, no qual me enfiava umas temporadas a escrever e a fazer maldades, invejoso da estante cheia de livros da Pleiade e passeando sob os castanheiros dos Inválidos durante o verão indiano. De modo que eis-nos juntos outra vez, entre silêncios, aberturas indianas do rei e longas conversas em que ele falava muito mais do que eu, àcerca de literatura, filosofia, política. Ou seja eu falava pouco
(sempre falei pouco)
não discuto nunca,
quando não estou de acordo calo-me. Se estou de acordo calo-me também.
Admirava-lhe a coragem, a profunda rectidão, a honestidade. As suas ideias
mantiveram-se as mesmas desde a guerra, numa fidelidade de princípios que me
agradava, eu que não tenho ideias, tenho iluminações, não racionalizo,
encontro. As nossas diferenças uniam-nos. Ele queria mudar a sociedade; eu,
mais modesto, apenas queria mudar o mundo. Com uma caneta. E depois, ainda que
não o confessássemos, vivíamos ambos mortalmente feridos de compaixão e
ternura, muito bem disfarçadas, claro. Achávamos nós que muito bem disfarçadas.
Já doente, por exemplo, preocupava-se imenso com uma operaçãozita de cacaracá
que me tinham feito à língua. A delicadeza da sua solicitude era sempre
elegante. Isto também admirava nele: a elegância, o pudor, a paixão da amizade,
não mencionando o facto de ter sido sempre implacável com a ausência de
carácter, a mentira, a cobardia. Um homem profundamente bondoso e, em boa parte
por culpa sua, frequentemente mal entendido. Não vou, por respeito ao seu
pudor, mencionar coisas íntimas, olha, vou mencionar uma, possuía uma grande
capacidade de tolerância e um genuíno amor aos homens que a postura severa e a
austeridade dos seus modos ocultavam. O Ernesto foi sempre uma pessoa justa eu
que lia a palavra desde menino, justo, e só a compreendi totalmente à medida
que o fui conhecendo. Postura severa: desfez-se inteira uma tarde, ao propor-me
- Vamos a Tavira?
e, após uma longa
pausa
- Fui feliz lá, na
infância.
E fomos a Tavira,
ele, eu e o menino que de repente saltou do Ernesto e nos passeou na cidade no
entusiasmo das lágrimas contentes, com o Ernesto a tentar calá-lo numa pressa
envergonhada
- Desculpa
embora quanto mais o
camuflasse maior ele aumentava de tamanho, quanto mais o cegasse no interior
dos óculos mais ele via, o Ernesto
- Desculpa
aflito com a criança
que morava nele, aliviando um pouco a dor de profundas raízes de um homem
atormentado pelos seus demónios secretos. Diziam-no esquivo e fechado: sempre
achei o contrário. Bastava olhar. O doutor João das Regras dirigindo-se ao povo
de Lisboa:
- Olhai, olhai bem
mas vêde.
Isto no génio de
Fernão Lopes, claro. Bastava ver. Eu para o Ernesto
- Tavira é mais
bonito que Paris, não é?
e o cigarro a responder
por ele
- É.
E é de facto: onde
nos sentimos felizes é a nossa terra natal. E notei então que para aquele
sujeito, ao contrário do que sucede à maior parte das criaturas, o amor era
mais do que prazeres breves e localizados. Trinta anos de amizade sem uma única
mancha. Ao contrário também do que muitos supõem o Ernesto não era um civil
fardado: era profundamente militar no sentido em que o meu avô o foi até à
morte e se orgulhava disso: no sentido da servidão, da camaradagem e do
orgulho. Sempre me irritou ouvir falar mal da tropa: a melhor recompensa que
recebi na vida consiste no amor dos meus soldados, na estima dos oficiais com
quem privei. Em Angola, o Melo Antunes era adorado e respeitado. Pela sua
autoridade natural, pela sua alma generosa e, perdoem-me a má criação, pelos
seus colhões. Ao chegarmos ao Ninda, um lugar horrível, preveniu-me
- Pendura a pila na
arrecadação mas guarda os colhões
Espero tê-los
guardado, não estou certo, mas ele conservou os seus. Escutei diversas vezes
- O nosso capitão
tem-nos no sítio
e toda a vida os teve
no sítio. Na doença, cujo fim ele sabia, nenhuma queixa, nenhum lamento,
nenhuma revolta: sofreu imenso com uma dignidade absoluta. Acompanhou-me, já
enfraquecidíssimo, ao enterro do meu muito querido José Cardoso Pires. Ao
sairmos do cemitério um senhor importante perguntou-lhe
- Como vai, meu caro
Melo Antunes?
e ele, que se
amparava ao meu braço, largou-me, dilatou-se dois metros e respondeu num
sorriso
- De vento em popa.
Um único comentário
para mim, ao amparar-se de novo ao meu braço
- Venho de sepultar
um amigo e pergunta-me como é que estou?
E assim fomos até ao
automóvel: de vento em popa. Conforme eu, ao acabar este texto, sabendo que vou
tornar a perdê-lo. Mas há-de existir por aí um braço e, tornando-se necessário,
dilato-me dois metros. Não: dois metros dilatou-se o capitão. Dilato-me meio
metro
- De vento em popa
porque sei que ele me
há-de amparar."
Belíssimo folhado de memórias e sentimentos. Com um paladar único. Como sempre têm as palavras de quem sabe o que é ter amigos com quem podemos andar sempre "feridos de compaixão e ternura".
ResponderEliminarObrigado Helena!
"De vento em popa"
ResponderEliminarAdorei.
Beijinhos Helena.
De facto os amigos não morrem, quando muito respeitam os nossos retiros, mas renascem em cada amanhecer dos nossos sonhos, estando presentes no corpo da nossa alma.
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